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Entrevista com Wagner Willian: O Desafio de Um Quadrinho Denso

Wagner Willian é um autor nacional ímpar. Primeiro ele causou estertores com seu Lobisomem Sem Barba, narrativa ganhadora do Prêmio Jabuti em 2015. Este ano ele veio com uma HQ com mais de 300 páginas chamada Bulldogma, contando a vida de uma ilustradora em meio a alienígenas e bizarrices. Através do estranho, Wagner nos aproxima do que é comum. Preparamos uma entrevista com ele, que você pode ler a seguir.

bulldogma

Splash Pages: Oi Wagner, bem, depois de apresentado para os leitores, eu gostaria que você nos respondesse a pergunta inevitável: quais são seus quadrinhos preferidos e quais leituras/HQs mais te influenciaram?

Wagner Willian: Olá, meu querido. Inevitável, e também o tipo de pergunta que será sempre injusta por deixar várias obras de fora. E minha preferência muda com o tempo. Mas respondo assim mesmo: Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro; Estigmas; Balas Perdidas; A Propriedade; O Vampiro que Ri; Isaac, o Pirata; As Aventuras de HP e Giuseppe Bergman; Fun Home; Jimmy Corrigan; Éden; Black Hole; Fritz, The Cat; Torpedo; Preto e Branco do Matsumoto; e claro, Lobo Solitário. São preferidas exatamente por me influenciarem em algum nível.


BULwagnerSP: Os dois trabalhos seus que eu li – Lobisomem Sem Barba e Bulldogma – tem um bocado de nonsense, mas também usam muito do cotidiano para compor essas narrativas. O nosso dia-a-dia nos revela que muito do que fazemos não tem sentido algum, mas eu gostaria de saber de ti, como é trabalhar esses dois elementos de uma forma que fique harmoniosa para o leitor.

WW: O nonsense foi um dos elementos usados para melhor traduzir as incertezas emocionais dos personagens, vivendo em um mundo imensamente instável como o nosso. No Lobisomem Sem Barba, a sobrenaturalidade está lá para engolir a realidade, violenta-la. Em Bulldogma, o nonsense permite alçar a realidade instável financeira e pessoal da Deisy. Precisava criar a tonalidade que permitisse ao leitor assimilar isso e acredito que, ao contrapor o nonsense à linguagem coloquial e naturalidade da personagem, tenha conseguido esse equilíbrio.


BULfreelaSP: Quem acompanhou o processo de feitura do Bulldogma, como eu, sabe que tem algumas coisas ali mostradas que tem a ver com sortes e revezes que você – enquanto “pessoa física” e autor – passou nesse período. Isso, imagino, foi proposital. Queria que você falasse um pouco sobre o processo de criação da história de Bulldogma e como os acontecimentos da sua vida influenciaram ele.

WW: Mesmo com esse nonsense que você citou, a expectativa alienígena e metalinguagens, Bulldogma é uma história sobre realidade. Para isso busquei legitimar a personagem em uma profissão da qual eu conheço bem. Muito do que foi dito no campo profissional, foi vivenciado por mim, infelizmente. É um mundo sujo, amigos. Um outro aspecto dentro da “realidade” da personagem é a questão virtual. Conversas em redes sociais, vídeos de youtube atravessam a narrativa. Para alguém que trabalha em casa e com o computador, isso é um dado comum. Deisy se apresenta como uma profissional da área de ilustração. Sendo assim, ela conhece o pessoal do meio. As mesmas pessoas que eu e você conhecemos. Por isso pontuei os quadros com tanta gente ali conhecida, aparecendo ao fundo. Você, por exemplo, é um dos que aparecem por lá (página 167). São mundos próximos. Deisy certamente faria o mesmo.


BULreal

SP: Você poderia considerar o seu álbum, Bulldogma, como uma narrativa de metalinguagem? Onde começa o ficcional e onde termina o biográfico no seu trabalho?

WW: Totalmente. A resposta anterior esclareceu um pouco isso. Mas há um outro fator dentro do terreno da ficção. Depois de perder o emprego como diretora de arte, a personagem volta ao “Fabuloso Mundo dos Frilas” e de quebra, resolve começar sua primeira HQ. Em determinada página percebemos que uma cena anterior corresponde a uma página do quadrinho em questão. O que está acontecendo no dia a dia da ilustradora? O que é sonho ou alucinação? O que faz parte do quadrinho que ela está produzindo? Temos três camadas narrativas onde o limite que as separa é extremamente sutil.


BULdogmaSP: Sua arte é sensacional, muito fotorrealística e o preto e branco são muito bem trabalhados. Fora isso, você faz cenários incríveis e a gente se sente dentro da história. Você usa fotos como referência de pessoas e lugares? A Deisy Mantovani – personagem principal de Bulldogma – foi inspirada em alguém?

WW: Obrigado pelo sensacional! Discordo quanto ao fotorrealismo. Toda a questão estética foi pensada em trabalhar as sensações que as imagens podem despertar na narrativa. Acredito que o desenho no Bulldogma vai muito mais por representação do que apresentação, expressão do que fotorrealidade. Alguns desenhos beiram o esboço justamente para reforçar a sugestão. Dito isso, sim, usei referência fotográfica a dar com o pau! Tanto pra cenário quanto personagens. Se eu partisse do nada, sentiria que algo estaria faltando sempre, pois partiria da memória. E a memória, como sabemos, é falha. E a realidade é mais complexa do que a imaginação pode supor. Quanto à caraterização da Deisy Mantovani, gosto de dizer que ela foi inspirada na melhor parte de algumas mulheres e na pior parte de mim.


BULverdadeSP: O que você acha do cenário de quadrinhos brasileiro? Um álbum como o seu, de mais de 300 páginas, está como um dos mais longos da nossa produção nacional recente. Qual você acha que é o motivo de não termos mais álbuns de “LP” ou de lombada de mais de dois centímetros nas prateleiras das livrarias e nas mesas dos festivais de quadrinhos?

WW: Grana. Se você está disposto(a) a se debruçar sobre uma obra tão extensa que irá consumir anos de trabalho, deveria receber um adiantamento para tal. O que não é muito praticado e acaba broxando todo mundo. Se for pra ser no risco, vamos pras quarenta páginas e olhe lá. O que fiz foi um ato de insanidade. Dor compartilhada é dor diminuída. Ainda bem, não sou o único.


bulldogmacapaSP: Wagner William a.k.a. Deisy Mantovani, mantém um site de entrevistas com profissionais do ramo chamado “O Flerte da Mulher Barbada”. Gostaria de saber de onde veio a ideia do site de entrevistas e como ele pulou das páginas para a web? Você acredita que esse tipo de transmídia enriquece a experiência do leitor e de que maneira ela pode ser ainda mais estimulada?

WW: Em uma cena, ela autografa o livro do Flerte que é a compilação das entrevistas de um canal do Youtube onde ela convidada o pessoal da área de ilustração, designers, enquanto era diretora de arte. Ela resolveu entrar para o mundo dos quadrinhos. Por que não continuar com as entrevistas, mas dessa vez em um bar/caferia onde pudesse tomar seu café ou sua cerveja, sem o incômodo da câmera filmando seus cacoetes, focando apenas na turma dos quadrinhos? Foi um movimento natural. A história me permitiu isso. E é algo incrível. No quadrinho ela interage com a ficção. No Flerte da Mulher Barbada, Deisy interage com a realidade. Dá pra imaginar o quanto isso tem sido enriquecedor para a personificação da personagem? Ela tem se divertido horrores. Espero que os leitores e entrevistados também. Sobre a transmídia, ela mesma comenta, no Bulldogma, sobre criar um desdobramento virtual para o quadrinho impresso. Coisa que fiz no www.bulldogma.wordpress.com, com cenas alternativas, easter eggs, etc. Vejo como uma maneira de ampliar ainda mais o alcance da história e da personagem. Seu trabalho, de longe, mexe com as expectativas dos leitores e faz com que a cabeça deles se contorçam.


BULvexSP: Queria que você falasse um pouco da importância de tirar o leitor do pensamento comum, pasteurizado e normatizado e dar uma chacoalhada nele, fazer pensar, como seu trabalho permite.

WW: Uma importância vital. Uma cultura massificada, que insiste perpetuar estereótipos e ignora qualquer incentivo a construção crítica, leva a um individuo previsível, estéril, controlável e retrógrado em todos os níveis, leva a um mundo sem qualquer empatia. Por isso prefiro a exceção à regra, o estranho ao trivial, a qualidade ao quantitativo, o inacessível ao de gosto fácil, a tudo àquilo que está do lado de lá da margem que separa mediocridade do que pode ser sublime, e esse sublime significando outras verdades. Ao menos para mim, uma importância vital.


Splash Pages: Obrigado pela entrevista, Wagner e sucesso com teus trabalhos futuro afora! Abraços!

Wagner Willian: Como disse a grande pintora Georgia O’Keeffe: “Nada é menos real que o realismo.”

COMPRE

                    

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Guilherme “Smee” Sfredo Miorando nasceu em Erechim em 1984. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, onde pesquisa quadrinhos e sexualidades. É especialista em Imagem Publicitária e bacharel em Publicidade e Propaganda. Ministra aula de quadrinhos e trabalha com design editorial e roteiros. Já trabalhou em museus e com venda de livros e publicidade. É pesquisador associado do Cult de Cultura e da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial). Faz parte do conselho editorial da Não Editora. Co-roteirizou o premiado curta-metragem Todos os Balões vão Para o Céu. Seu livro de contos Vemos as Coisas como Somos foi selecionado pelo IEL-RS em 2012. A partir de 2014, publicou ao menos um quadrinho independente por ano. Loja de Conveniências, sua primeira narrativa longa foi lançada em 2014. Em 2015 participou da coletânea de HQs LGBT Boys Love. Em 2017 colaborou com o quadrinho A Liga dos Pampas de Jader Corrêa, que explora mitos gauchescos. Também lançou Desastres Ambulantes em parceria com Romi Carlos, um quadrinhos sobre segunda guerra mundial e OVNIs, que foi selecionado pelo edital estadual PROAC/SP. Em 2017, publicou Abandonados Pelos Deuses: Sigrid, com Thiago Krening e Cristian Santos e também Fratura Exposta: REDUX com Jader Corrêa. Também escreve os roteiros para os super-heróis portoalegrenses Super Tinga & Abelha-Girl. Mantém o blog sobre quadrinhos splashpages.wordpress.com há mais de 10 anos.

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