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A Editora Que o Pato Pagava Está Pagando o Pato?

Esta semana o mercado de quadrinhos foi pego de surpresa. A Editora Abril estava cancelando sua linha Disney, que nos últimos anos vinha focando em trazer encadernados de luxo das fases de ouro de personagens como Pato Donald, Tio Patinhas e Mickey Mouse. Décadas atrás, a Editora Abril era a editora que monopolizava a produção de quadrinhos nacionais, publicando Turma da Mônica, Disney, Marvel, DC Comics e mais tudo que se imaginasse de grandes marcas licenciadas. Hoje, saiu um relatório financeiro da empresa dizendo que, no ano passado, a editora teve um prejuízo de mais de 300 milhões de reais. Vamos falar um pouco sobre a Editora Abril?

raiovermelhoA Editora Abril foi fundada pelo imigrante italiano Victor Civita, no começo da década de 50. Sua primeira publicação – pasme quem não sabia dessa informação – era uma revista em quadrinhos. Ela se chamava Raio Vermelho e era uma republicação de um faroeste italiano em formato horizontal. Mas o sucesso da editora veio mesmo com o licenciamento dos personagens de Walt Disney. Por isso, costuma-se dizer que a primeira revista da Abril foi O Pato Donald.

Nos anos 40, como parte da política da boa vizinhança dos Estados Unidos, a Disney lançava o filme Saludos, Amigos (Alô, Amigos, no Brasil). Era 1942 e a Segunda Guerra Mundial estava em seu ápice, por isso a intenção dos “amigos” estadunidenses era atar laços com os governos da América Latina, que arrastava uma asa para o regime nazista, e trazê-los para o lado dos aliados. Para isso, o governo estadunidense junto com o magnata Nelson Rockfeller, promoveram um tour de Walt Disney por vários países da América Latina. O historiador de cinema Alfred Charles Richard Jr. comentou que Saludos Amigos “fez mais para cimentar uma comunidade de interesse entre os povos das Américas em poucos meses do que o Departamento de Estado tinha em cinquenta anos”.

Uma das consequências desse filme foi a criação de um personagem pelos Estúdios Disney que por muito tempo foi a “cara do Brasil”: o malandro carioca José “Zé” Carioca. Preguiçoso, charlatão, trambiqueiro, caloteiro, eram algumas das “qualidades” associadas à Zé Carioca ao longo dos anos. Zé Carioca estampou a capa da primeira edição de O Pato Donald e não demorou muito para que ele tivesse uma revista solo totalmente publicada no Brasil, tal era a popularidade das revistas, dos filmes e dos produtos da Disney. Dois anos depois que saíra O Pato Donald, em 1951, as bancas viam a chegada de outro gibi Disney: Mickey. Ainda no ano de 1935, o Cleveland Plain Dealer descreveu uma criança imaginária da seguinte forma:

Em seu quarto, com papel de parede do Mickey Mouse e iluminado com abajures do Mickey Mouse, seu despertador do Mickey Mouse o acorda, caso sua mãe esqueça de fazer isso! Saindo de sua cama em um pulo, onde seu pijama e suas roupas de cama são da marca do Mickey Mouse, pisando um chão em que os tapetes e o linóleo são do Mickey Mouse, ele calça seus mocassins do Mickey Mouse e vai correndo até o banheiro, em que o sabão é feito à maneira Disney, assim como o são sua escova de dentes, sua escova de cabelos e suas toalhas. (in THOMPSON, 2018, p. 331)

mickeywatch

A prioridade do editor, desde o começo, foi investir na construção de um centro gráfico, operado inicialmente apenas por nove profissionais. […] Em 1952, uma nova máquina impressora de duas cores já produzia as capas da fotonovela Capricho, que se juntava à Mickey e O Pato Donald. Com o surgimento da Abril em 1950, o mercado brasileiro de histórias em quadrinhos ganhou mais um editor que faria a história da imprensa a partir dos gibis. (JÚNIOR, 2004, p. 167)

Pela Abril brasileira [havia uma filial argentina], em 1950, saiu o gibi O Pato Donald com 87, 37 mil exemplares, o que será o carro-chefe da editora. A tal ponto que em seus empreendimentos mais arriscados, Victor Civita costumava acalmar seus colaboradores com a frase “O Pato paga”. (MIRA, 2001, p. 30)

Estas duas citações ajudam a entender o poderio potencial que a Editora Abril tinha e viria a se tornar, duas décadas depois, ampliando seu espectro para revistas masculinas e femininas, como Cláudia e Quatro Rodas, e ampliando sua segmentação. Para os gibis, em 1989, a editora viria a criar o selo Abril Jovem, numa época em que os quadrinhos em formatinho tinham uma tiragem de 400 mil exemplares. Para se ter uma idéia, a tiragem das revistas de heróis da Panini Comics hoje em dia não representam nem 10% desse número. O selo Jovem da Abril se encerrou no final dos anos 90 com o canto do cisne dado pela Panini Comics que planejava abrir um braço editorial para as revistas Marvel e DC Comics que já licenciava para outros países, inclusive para a Abril.

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Mas em 1966, surgia o maior sucesso de público de de crítica da Editora Abril, a Revista Realidade, ainda hoje estudada nos cursos de jornalismo como case de boas fotos e boas reportagens. Além disso, seu design gráfico foi muito premiado. Era mensal e foi uma das primeiras revistas a trazer o estilo nascedouro do new journalism, de escritores como Tom Wolfe e Gay Talese. Com um endurecimento cada vez maior da censura prévia durante o período militar, o conteúdo da realidade foi empobrecendo, até que a revista acabou em 1976.

Com o sucesso de Realidade, os executivos da Editora Abril resolveram lançar uma revista semanal aos moldes da TIME estadunidense. Chegava às bancas em 11 de setembro de 1969, a revista “Veja e Leia”, que mais tarde seria renomeada apenas como Veja. A revista veio para concorrer com outras semanais da época como O Cruzeiro e Manchete. Se realidade havia atingido 400 mil exemplares com seu primeiro número, Veja conseguiu 700 mil. Mas essa vendagem caiu para 100 mil no segundo, dando enorme prejuízo à Abril. A edição de número 15 foi totalmente recolhida pela censura da ditadura brasileira.

Com o fim de O Cruzeiro, Manchete, Realidade e outras, Veja se consolidou como a principal revista de informações semanal a partir da década de 90. Contudo, ficou na mente dos brasileiros como uma publicação anti-esquerda, que por anos acolheu colunistas ultra-direitistas como Rodrigo Constantino, Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo. Essa orientação política da revista Veja e da Editora Abril ficou muito mais clara durante os dois períodos de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) entre 2003 e 2011.

Nessa onda antipetista, até a facção Disney da Editora Abril entrou na dança, quando o especial O País dos Metralhas era lançado em pleno escândalo do mensalão petistas. O especial fazia referência ao neologismo “petralha”, uma corruptela justaposta das palavras “petista” e “metralha”, os últimos, notórios bandidos das histórias do Tio Patinhas. A palavra petralha dava a entender que todo petista era bandido, na concepção do jornalista Reinaldo Azevedo, autor do livro “O País dos Petralhas”, lançado em 2008 pela Editora Record.

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Em outubro de 2014, a VEJA trouxe a capa uma reportagem do doleiro Alberto Youssef, onde ele afirma que Dilma e Lula sabiam do esquema da Petrobras. A capa trazia a foto dos dois com a frase: “Eles sabiam de tudo”.O lançamento da edição foi antecipado para quinta-feira anterior ao domingo da eleição, quando normalmente é feito nos sábado. A antecipação da edição e teor da reportagem de capa taxados pela coligação da candidata Dilma com tentativa de manipulação do processo eleitoral. A Veja, que se justificava dizendo que trazia um jornalismo idôneo e que não tomava partido, acabou tendo sua imagem manchada com a população durante muitos anos.

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Logo depois do governo de Lula, outro Pato veio a se tornar um dos personagens políticos mais curiosos e intrigantes do cenário político. Era o pato amarelo gigante da FIESP que, em marchas de pessoas vestindo camisetas amarelas e portando cornetas e panelas barulhentas, vinha ao lado de outras enormes faixas que diziam “Chega de pagar o Pato”. A campanha da FIESP pedia o Impeachment da então presidente eleita Dilma Rousseff, apoiado, ainda que não às claras – para quem não queria ver – pela editoria da Veja e da Abril.

O Impeachment foi conseguido alegando que Dilma e suas “pedaladas fiscais” bem como seu “envolvimento” com o escândalo da Petrobrás citado acima estavam afundando a economia brasileira. Assumiu o vice, Michel Temer, que ao lado de seu partido PMDB – que recentemente mudou de nome para MDB, querendo limpar suas manchas do presente passado -, prometeu criar uma “ponte para o futuro” para o Brasil. Contudo, o país se vê em uma crise econômica e fiscal, para não dizer política, sem precedente na nossa história que o impedimento da presidente e a ascensão de Temer e seus aliados de todas as partes não conseguiram barrar.

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Agora, o Pato toma lugar nas notícias de novo. A Disney vai parar de ser publicada pela Editora Abril, que publica Veja, que apoiou o pato da FIESP, que tirou Dilma do poder. Várias coleções Disney, que pareciam o maior aporte de dinheiro na seara das publicações do Pato, entre elas a Coleção Carl Barks, a Biblioteca Don Rosa, Os Anos de Ouro do Mickey, foram suspensas do mercado, segundo matérias nos sites Universo HQ e na capa do portal do UOL. Em sua página do Facebook,a Abril respondeu aos leitores dizendo simplesmente que as coleções estavam suspensas, que os formatinhos de banca continuam e mais para frente novas informações serão dadas. Entretanto, desde o início da semana, nenhuma novidade veio à público, revelando que a transparência é um problema característico das grandes editoras de quadrinhos brasileiras como a Abril e a Panini.

O quadro geral da Editora Abril se agravou quando o site Poder 360º trouxe a matéria sobre o balanço comercial de 2017 da editora dos Civita, dizendo que a mesma havia acumulado um prejuízo de mais de 300 milhões de reais. A auditoria da PwC afirma uma “incerteza relevante” para a empresa, dizendo que seu lucro caiu mais de 140% comparado a 2016 e que o patrimônio negativo foi de 715 milhões de reais. O antes poderio de uma editora que poderia dizer que “o pato paga” se transformou no ato de “pagar o pato” pela pataquadas que promoveu. O capitalismo também acaba sendo malvado com os capitalistas.

Um amigo meu me fez a comparação da publicação do O Pato Donald com os corvos da Torre de Londres. Conta a lenda de que os corvos que moram lá evitam a queda da Inglaterra. Por isso não foram exterminados até hoje. Se O Pato Donald manteve a Editora Abril de pé e funcionando até hoje, será que a extinção dos títulos da Disney dos quadros da outrora poderosa editora paulista significará o fim da mesma? Como diria o Pernalonga, outro título editado pela Abril nos “anos de ouro”, está aberta a temporada de caça aos patos!

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REFERÊNCIAS:

JÚNIOR, Gonçalo. A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos 1933-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revista: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho D’Água/FAPESP, 2001.

THOMPSON, Derek. Hit makers: como nascem as tendências. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2018.

6 comentários

  1. Como será que anda a saúde financeira da panini no Brasil? A linha Marvel está cancelando revista atrás de revista e ninguém parece saber quais os planos deles.
    Engraçado é que a linha dc da panini está me parecendo muito mais organizada. É tudo um completo mistério.

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  2. Seu texto estava excelente, até transparecer sua “revanche justa” da Abril padecer apenas por ser “anti-esquerda”, devia reavaliar sua posição lendo a própria, visto que hoje ela é mais anti-direita, chegando quase ao nível da “Carta Capital”. Reli recentemente o livro do Mainardi, e não vejo o por que de tanta raiva das pessoas com ele. Ele é apenas dolorosamente realista, e cínico até onde dá…

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    • Guilherme Smee diz

      Então, Ozzy! A Veja ter se tornado “esquerdista” é tapa o sol com a peneira, porque ninguém enxerga isso na revista. Enquanto o “direitismo” transparecia em capas, conteúdos, colunas e reportagens-denúncia. Por que raiva do Mainardi? Eu lembro bem quando aprovaram o casamento gay na Argentina e ele, o Lucas Mendes, o Ricardo Amorim e seus amigos do Manhattan Connection ficaram fazendo troça e piadinha sobre isso. Ele que seja dolorosamente realista com a sua família para ver se ela gosta. Abraços! =)

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  3. Stefano diz

    a desveja e a editora 1º de abril nunca teve amor ao país… são agentes do capital estrangeiro. Não me apego a papo de “esquerdista-direitista”…
    Mas alguns direitistas patriotas a desprezam.

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