Seth é um dos mais festejados quadrinistas canadenses. Ele também é um dos pioneiros a fazer quadrinhos indies autobiográficos, tendo começado ainda nos anos 90 esse tipo de história memorial que teve seu boom em meados dos anos 2000. A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar é o seu segundo trabalho publicado no Brasil, mas é de longe o mais famoso internacionalmente e o cartão de visitas da sua obra. Publicada pela Editora Mino em 2018, esse quadrinho é uma leitura obrigatória para aqueles que curtem artes sequenciais com teor autobiográfico. A seguir, descrevo um pouco melhor sobre esse quadrinho bem diferente do que estamos acostumados, mas com alguma coisinha em comum.
A história de A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar segue o próprio autor, o quadrinista canadense Seth, um homem obcecado com a sua infância, o seu próprio passado, o passado do mundo em geral e com tirinhas antigas de quadrinhos. Nessa obsessão, ele acaba encontrando cartuns de um artista desconhecido, que assina como Kalo. Então, Seth se propõe a saber mais sobre Kalo e porque suas tirinhas eram tão desconhecidas e qual seria razão de sua obscuridade e ostracismo. Ao mesmo tempo em que empreende sua busca, Seth vai contando um pouco da sua própria vida: o relacionamento com a família, o início e o fim de um namoro, a amizade com outro grande cartunista canadense que é Chester Brown.
A autobiografia de Seth, assume um estilo flâneur, expressão cunhada pelo poeta maldito francês Charles Baudelaire e estudada pelo filósofo Walter Benjamin. O substantivo flâneur em francês significa caminhante, vadio, errante, observador. O ato de flanar compreende tudo isso. Para Benjamin, essas ações eram uma forma de compreender as dinâmicas da cidade e como o mundo funciona, observando e se indagando sobre a substância das coisas. É mais ou menos dessa forma que Seth caracteriza a si mesmo: como um investigador das cidades, seja daquela onde reside ou das que visita em busca de vestígios sobre Kalo.
O que Seth acaba encontrando são vestígios apenas. Mas esse elemento é essencial para os pesquisadores da memória. Para Aleida Assmann (2011), o vestígio memorial é algo que teve seu contínuo comunicacional e memorial rompido. O vestígio vai além dos textos, passa por “inscrições”, às ações proferidas no objeto a partir de outros objetos, o seu desgaste, a erosão, o que era e não está mais ali, mas de alguma forma, persiste. O vestígio é algo que, apesar de não ter sido concebido como um símbolo linguístico, é interpretado como tal. Ainda que não uma linguagem e nem um signo, o vestígio é uma marca, contudo, imprecisas e praticamente irreconhecíveis. “Quanto ao deslocamento de interesse dos elementos remanescentes para os vestígios, trata-se de uma reconstrução do passado que se dá sobretudo a partir de testemunhos não endereçados à posteridade e não destinados a durar. Eles podem comunicar algo sobre o que a tradição geralmente cala: o dia a dia a que ninguém atenta” (ASSMANN, 2011, p. 230)
Ao mesmo tempo em que a “biografia” de Kalo é montada a partir de vestígios, a autobiografia de Seth se dá também a partir da ficção. Pois ele mescla fatos de sua própria vida com a vida ficcional de Kalo, que na verdade nunca existiu, e serve como um artifício para Seth perscrutar sua própria existência. Então, mais que apenas autobiografia, A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar, é uma autoficção. Serge Doubrovsky trouxe à luz o termo autoficção, se contrapondo à autobiografia clássica, de feitos de pessoas importantes. A autoficção tem formatos vanguardistas, difusos, de sujeitos fragmentados. Seus narradores não trazem á tona apenas fatos, mas os manipulam das diversas formas que a linguagem, a arte e a mídia em que estão encerrados permitem. A autoficção seria “uma variante ‘pós-moderna’ da autobiografia na medida em que ela não acredita mais numa verdade literal, numa referência indubitável, num discurso histórico coerente e se sabe reconstrução arbitrária e literária de fragmentos esparsos de memória” (DOUBROVSKY in FIGUEIREDO, 2013, p. 62).
O design gráfico utilizado por Seth nesse quadrinho – e incrivelmente bem adaptado para edição brasileira pela Editora Mino – também conta uma história. Num misto de vintage e retrô ficcional, esse estilo de design também sublinha um outro nível da obsessão de Seth com o passado. Tudo parece ter saído da época do pré-segunda guerra mundial. Mas é uma história atual. Por vezes até mesmo o próprio Seth é confundido com Dick Tracy e Clark Kent. Seu quadrinho anterior, Wimbledon Green, editado no Brasil pela A Bolha Editora, também possui essas características: o colecionismo, a obsessão, a individualidade, a solidão. Temas que também perpassam a obra do seu melhor amigo, Chester Brown (de A Playboy, Pagando Por Sexo, Maria Chorou aos Pés de Jesus), contudo, o trabalho de Brown possua uma verve mais polêmica voltada para as experiências sexuais.
É importante destacar que mais que a memória, o trabalho de Seth lida com a memória fraturada, sempre buscando encaixar peças soltas sobre vidas e a própria vida do autor. Suas narrativas são peças desencaixadas que o leitor terá de compor uma figura ao final da leitura, mesmo com buracos nesse quebra-cabeças. Assim como os vestígios memoriais, vai ser necessário que se faça algumas suposições sobre as partes para se entender o todo. No final do livro, fica a reflexão de Seth se vale mesmo a pena viver no passado como ele têm feito, ou se, como ele acaba descobrindo, se é preciso abandoná-lo e seguir em frente como fez o objeto de sua investigação, o ficcional cartunista Kalo.
Exatamente por lidar com vestígios memoriais de uma forma lacunar, confusa até, dentro de uma autoficção em quadrinhos é que torna este trabalho de Seth, com o perdão da palavra, memorável. Uma leitura que, para um leitor apressado, pode parecer singela demais, mas quando se propor a pensar a obra no sentido de uma autoficção lacunar, pode encontrar significados muito maiores do que apenas um quadrinho com estilo retrô e cartunesco. Eu já gostava muito do trabalho de Chester Brown. Agora, ao ler esse trabalho de Seth passei a apreciar e valorizar muito mais Seth e os quadrinistas independentes canadenses, cuja nova geração incluem Jeff Lemire e Bryan Lee O’Malley.
Referências:
ASSMANN, Aleida. Espaços de recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora UniCamp, 2011.
BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2015.
FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
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