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Projeção e Identificação

Quero ser o Homem-Aranha. Ou Peter Parker?

Quero ser o Homem-Aranha. Ou Peter Parker?

Os quadrinhos promovem um sistema de identificação e projeção nos leitores. Com a revista do Homem-Aranha nas mãos o nerd médio se identifica com Peter Parker e projeta em sua imaginação ter a coragem e os poderes do Homem-Aranha. Ou será que acontece um processo inverso? O nerd se identifica com a ausência de poderes e coragem e projeta a vida do comum Parker, buscando um dia ser fotógrafo como ele ou jornalista como Clark Kent?.

São as semelhanças ou as diferenças que nos atraem? Essa questão vem norteando os relacionamentos humanos durante os tempos. Nunca chegou-se a uma conclusão. Mas os estudos mostram que uma das grandes razões de sucesso das narrativas heróicas é a utilização de arquétipos. Nos quadrinhos podemos encontrar vários deles.

Já vimos aqui que em vários quadrinhos, o que faz a grande diferença, o grande big-bang no cérebro é o desconcerto que certas cenas nos oferecem. São as obras quebrando nossas projeções e identificações. Quando o leitor de quadrinhos cresce, ele não está mais preocupado em querer ser o Homem-Aranha, mas fica chocado ao descobrir em Do Inferno, que William Gull, médico da Rainha, é Jack, o Estripador. E não apenas isso. Ele está a mando da soberana para eliminar evidências de um caso extra-conjugal na família real. Claro, que ainda aqueles que se identificam com Gull ou outros personagens como o Justiceiro. A esses, falta um pouco de senso crítico. O que acontece em Do Inferno é a desconfirmação dos arquétipos, a desconstrução da identificação, ainda que um pouco dela deve existir para que o leitor continue acompanhando a história.

“O interesse que sentimos pelos personagens não vem, portanto, daquilo que reconhecemos em nós mesmos (somente os romances mais grosseiros fazem uso desse processo), mas daquilo que aprendemos sobre nós mesmos. A verdade que emana de nossa interação com as figuras fictícias é, com muita freqüência, uma verdade ignorada. É a diferença, e não a semelhança, que permite descobrir-se. Os personagens mais interessantes são aqueles que vão ao encontro das supostas inclinações do leitor”, diz Vincent Jouve no livro L’effet-personnage, citação copiada descaradamente do blog da Carol.

O inverso dos arquétipos na Santa Ceia Perpétua!

O inverso dos arquétipos na Santa Ceia Perpétua!

Agora peguemos os Perpétuos de Neil Gaiman para explicar essa frase. Nem sempre reconhecemos em nós mesmos o Desespero, ou o Desejo, até mesmo a Destruição. Mas lendo as palavras dos personagens de Gaiman muitas vezes nos pegamos pensando; “é, realmente, acontece dessa forma, por que eu nunca tinha percebido?”. Os personagens de Gaiman tem essa qualidade de, como diz o próprio Sonho, “pronunciar verdades que não se falam”. Quando nos pegamos reconhecendo em nós mesmos nossas falhas, o Destino, a Morte, o Sonho, o Desejo, o Desespero, a Destruição e o Delírio dentro de nós é que conhecemos nossas diferenças. É quando compreendemos que não somos arquétipos, nem personagens. Não precisamos nos identificar exclusivamente. Mas aprendemos. Cada um na sua, com alguma coisa em comum, já dizia a marca de cigarros.

Os próprios Perpétuos são construções e desconstruções destes aspectos da vida humana. Se por um lado a Morte é aquela que nos arranca deste plano de existência, ela também é a irmã ideal, alguém com quem você pode conversar por horas sem se cansar, que é alto-astral e carinhosa. Destruição, por outro lado, é um artista frustrado. Apesar de encarnar o caos, ele quer construir algo para si, ser reconhecido por algo que ele mesmo construiu.

É a diferença, não a semelhança que permite descobrir-se. E talvez seja por essa razão que para muitos sejam mais fácil se identificar com os X-Men. Eles representam a diferença, aquilo que não é comum, mas que permite descobrir que a diversidade é algo mais normal que a semelhança. Essa é a moral da nossa história.

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Guilherme “Smee” Sfredo Miorando nasceu em Erechim em 1984. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, onde pesquisa quadrinhos e sexualidades. É especialista em Imagem Publicitária e bacharel em Publicidade e Propaganda. Ministra aula de quadrinhos e trabalha com design editorial e roteiros. Já trabalhou em museus e com venda de livros e publicidade. É pesquisador associado do Cult de Cultura e da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial). Faz parte do conselho editorial da Não Editora. Co-roteirizou o premiado curta-metragem Todos os Balões vão Para o Céu. Seu livro de contos Vemos as Coisas como Somos foi selecionado pelo IEL-RS em 2012. A partir de 2014, publicou ao menos um quadrinho independente por ano. Loja de Conveniências, sua primeira narrativa longa foi lançada em 2014. Em 2015 participou da coletânea de HQs LGBT Boys Love. Em 2017 colaborou com o quadrinho A Liga dos Pampas de Jader Corrêa, que explora mitos gauchescos. Também lançou Desastres Ambulantes em parceria com Romi Carlos, um quadrinhos sobre segunda guerra mundial e OVNIs, que foi selecionado pelo edital estadual PROAC/SP. Em 2017, publicou Abandonados Pelos Deuses: Sigrid, com Thiago Krening e Cristian Santos e também Fratura Exposta: REDUX com Jader Corrêa. Também escreve os roteiros para os super-heróis portoalegrenses Super Tinga & Abelha-Girl. Mantém o blog sobre quadrinhos splashpages.wordpress.com há mais de 10 anos.

3 comentários

  1. E é entre essa dualidade: diferença e semelhança que encontrarmos a essencia primordial que permeia a todos. Cada um é universo totalmente diferente do outro, com um papel especifico por estar vivo. Nada é por acaso.
    A coincidencia é uma mera ilusão. E é este véu(Maia) que ofusca este “”normalidade” e a rotula de estranha. Para enxergar basta ir de coração, um pouco além do ego(casca).
    hoho me empolguei.

    abraços!

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