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A Manipulação do Leitor Através do Autor de Quadrinhos

Toda linguagem pressupõe um ato de troca, todo ato de troca pressupõe uma relação de poder. Toda comunicação pressupõe uma dominação, ou seja, uma dominação. De certa forma, o autor de quadrinhos conduz o leitor em um fio da narrativa que o leva até onde o autor deseja. Aqui vamos  ver melhor como se dá esse processo.

A história em quadrinhos só é uma comunicação eficiente porque os autores usam a narrativa como uma transferência como mediação entre o mundo e o leitor. Essa mediação é efetuada pela memória, seja através do inconsciente coletivo, da bagagem cultural ou dos comportamentos e associações que o leitor pode depreender. O autor de quadrinhos reconfigura o mundo para o leitor, de uma forma a dar ordem a ele, fazendo uma “superdeterminação”, dentro de um mecanismo de transferência e projeção.

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Esse mecanismo de transferência e projeção é o mesmo que faz o leitor comum se identificar com os franzinos Clark Kent e Peter Parker e projetar a si mesmo no Superman e no Homem-Aranha, respectivamente. O esquecimento de si dá lugar, abre espaço, ao novo do outro que é traduzido pela linguagem. O que fica é a memória de uma experiência. Essa experiência pode ser de nível intrínseco, como da narrativa que está sendo mostrada dentro da história onde um incidente com o personagem remete a alguma situação já vivida pelo leitor, ou então, ela pode ser extrínseca, como a condução da leitura de uma página de quadrinhos, que se lê em formato de “Z”, de cima para baixo, da esquerda para a direita. Esta condução da leitura só se dá por causa de uma memória coletiva que determinou que o sentido da leitura ocidental se dá desta maneira.

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A leitura oriental se dá ao contrário da ocidental, mas também é orientada pela memória.

A força de linguagem, seja ela uma palavra ou uma imagem, está na presença da palavra. Mas palavra aqui não necessariamente implica um texto, mas uma expressão. Essa expressão tende a ampliar o entendimento do leitor, vai desmobilizá-lo para mobilizar novamente, a cada página, o que vai levá-lo a virá-la e buscar novos conteúdos que descristalizem seu entendimento para cristalizá-lo novamente e assim, sucessivamente, num acúmulo e desacúmulo de saberes e ressignificações.

A eficiência da comunicação e da linguagem está na sua força de sedução e enigmaticidade, quando aproxima a obra do indecifrável e faz o leitor empreender essa busca. Nos quadrinhos, o espaço em branco contribui em muito para essa força interrogativa, afinal, eles são construídos de momentos. Mas o que acontece entre um momento e outro? Por que o autor escolheu trazer aquele momento cristalizado para o leitor e não um outro? O que a calha, a sarjeta, ou o “gutter” dos quadrinhos esconde e revela ao mesmo tempo? A sarjeta, então, acaba compondo um espaço extralinguístico, que assim, como o espaço em branco é essencial para o entendimento dos quadrinhos como narrativa.

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Esse ato de manipular o leitor através de “cortes” nos quadros de um quadrinho se dá através da performance do mesmo. “Vista desse ângulo, a produtividade da reflexão de Roland Barthes para a estratégia da manipulação consiste na visualização da linguagem e de sua multiplicidade de figurações de natureza simbólica (artística) e não simbólica (científica, cultural e política), sempre partindo da palavra (dita e não dita, oral e escrita ou apenas insinuada) do sujeito. Talvez, o que torna a efetividade da linguagem dos quadrinhos maior do que a linguagem apenas textual seja que ele amplia o perceber através de suas propriedade icônicas sublinhadas pelas imagens. Afinal a seleção feita pela linguagem, seja ela textual ou imagética, acaba travestindo a percepção através da ordem da narrativa. Isso retrai, atenua e diminui a insuficiência do dizer em oposição à plenitude vasta do perceber.

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A linguagem, mas principalmente a dos quadrinhos, entra dentro de um jogo do dizer e do esconder. Joris Driessen já disse que “os quadrinhos são a arte de omitir”. Afinal, é o autor quem vai escolher o que representar para o leitor para dar sentido à sua história. Ele também vai escolher o ritmo que vai querer dar à história, pontuando as frases e escolhendo o tamanho dos requadros dentro da página de quadrinhos. Assim, como diz Barthes, o autor está sempre malogrando porque quer causar um efeito no leitor.

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Por fim, essa necessidade da narrativa de criar uma ordem, um sentido para o mundo e para a vida que, como diria Shakespeare, não possui sentido algum, acaba ativando tanto no leitor como no autor uma transcendência do eu. O autor se desvia da verdade verdadeira e acaba produzindo um real artificial, porém eficiente para transmitir e, de certa forma, manipular o leitor levando à uma criação de uma linguagem, de um pacto entre emissor e receptor, que torna a leitura, do quadrinhos ou do que quer que seja, algo tão prazeroso e recompensador.


Bibliografia:

BARTHES, Roland. Malogramos sempre ao falar do que amamos. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

por

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando nasceu em Erechim em 1984. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, onde pesquisa quadrinhos e sexualidades. É especialista em Imagem Publicitária e bacharel em Publicidade e Propaganda. Ministra aula de quadrinhos e trabalha com design editorial e roteiros. Já trabalhou em museus e com venda de livros e publicidade. É pesquisador associado do Cult de Cultura e da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial). Faz parte do conselho editorial da Não Editora. Co-roteirizou o premiado curta-metragem Todos os Balões vão Para o Céu. Seu livro de contos Vemos as Coisas como Somos foi selecionado pelo IEL-RS em 2012. A partir de 2014, publicou ao menos um quadrinho independente por ano. Loja de Conveniências, sua primeira narrativa longa foi lançada em 2014. Em 2015 participou da coletânea de HQs LGBT Boys Love. Em 2017 colaborou com o quadrinho A Liga dos Pampas de Jader Corrêa, que explora mitos gauchescos. Também lançou Desastres Ambulantes em parceria com Romi Carlos, um quadrinhos sobre segunda guerra mundial e OVNIs, que foi selecionado pelo edital estadual PROAC/SP. Em 2017, publicou Abandonados Pelos Deuses: Sigrid, com Thiago Krening e Cristian Santos e também Fratura Exposta: REDUX com Jader Corrêa. Também escreve os roteiros para os super-heróis portoalegrenses Super Tinga & Abelha-Girl. Mantém o blog sobre quadrinhos splashpages.wordpress.com há mais de 10 anos.

5 comentários

  1. Bacana a reflexão. Acredito que a literatura “mídia” como uma todo tem um pouco esse poder, mas realmente os quadrinhos conseguem ter um tipo de linguagem que apenas “Essa” possui tal maestria.

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    • Guilherme Smee diz

      É verdade, os quadrinhos acabam sendo mais “efetivos” pois contam com a narrativa visual, por outro lado, deixam aos coisas menos subjetivas, o que pode ser um demérito. Abs! =)

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      • Sobre ser “menos subjetiva”, acho que tem a ver com o que você escreveu acima, o seu público possui uma bagagem cultural – “Essa mediação é efetuada pela memória, seja através do inconsciente coletivo, da bagagem cultural ou dos comportamentos e associações que o leitor pode depreender”.

        Só acho que essa linguagem ajudaria e deveria ser mais explorada na formação de novos leitores, sua estrutura é muito chamativa e sua linguagem apresentável pra uma galera que não consegue ler “Livros” – temas diversos, linguagem e arte que poderia desafogar e despertar o gosto de muitos por ai.

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      • Guilherme Smee diz

        Acho que já tem sim. Uma colega do mestrado que fez uma pesquisa sobre bibliotecas em comunidades carentes disse que eles gostariam que tivessem mangás na biblioteca. Então acho que é um bom primeiro passo para embarcar em leituras mais profundas. Abs! =)

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      • Guilherme Smee diz

        Jefferson, mas também tu tem que levar em conta que tem gente que não consegue ler ou entender a linguagem dos quadrinhos também. Sim, isso existe! Abraços! =)

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