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Meia-Noite: O Homem com H Maiúsculo Que é Gay

Sob certos aspectos, muitos poderiam dizer que super-heróis são o epítome da masculinidade. Que Superman e Batman são fortes, musculosos, intrépidos, altruístas, poderosos, corajosos e têm pelo no peito. Coisas que fazem um homem muito homem. Um homem com H, um super-homem. Mas e quando Warren Ellis e Bryan Hitch trouxeram a versão gay de Super-Homem e Batman, nas histórias do Stormwatch e do Authority, como os personagens Apolo e Meia-Noite? Será que esses personagem deixaram de serem homens com H maiúsculo por conterem todas as características de Superman e Batman, mas por se considerarem homossexuais? Essa semana eu li o encadernado do Meia-Noite pelo DC You e vou considerar algumas dessas proposições além, é claro de falar mais sobre o personagem.

Apolo e Meia-Noite foram o primeiro casal gay de super-heróis a trocarem alianças em uma história em quadrinhos. Isso aconteceu em 2001, na edição final de Mark Millar no título do Authority, um pouco antes das Torres Gêmeas serem derrubadas por terroristas e a HQ ser cancelada por motivos óbvios. Mesmo com o gibi do The Authority não ter retornado por um bom tempo enquanto a histeria com os terroristas por parte dos estadunidenses não diminuía, foram feitas algumas tentativas de emplacar um gibi-solo do Meia-Noite. Quem ficou encarregado daquelas edições foi Garth Ennis, famoso por trabalhar em seus quadrinhos tanto a violência como a camaradagem masculina. A HQ, era desenhada por Chris Sprouse e durou 20 edições entre 2006 e 2008. No primeiro arco, que foi feito por Ennis e Sprouse, Lucas Trent, o nome adotado por Meia-Noite é desafiado a matar Adolf Hitler.

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Pela HQ dos anos 2000 passaram nomes como Brian K. Vaughan, Darick Robertson, Christos N. Gage, John Paul Leon, Keith Giffen e CrissCross, por exemplo, com a grande parte das HQs abordando temas violentos como combate, guerra e operações militares. Outros temas abordados foi seu passado nublado, antes de os alienígenas que o raptaram e o deixaram aprimorado para técnicas de combate, terem deixado ele em animação suspensa por anos em sua nave. Em 2007 saiu a minissérie Bandoleiro & Meia-Noite, escrita por Chuck Dixon, um roteirista conhecido por ser contra a comunidade gay. Ou seja, mesmo estando no foco das atenções e tendo uma série só sua, o fato de Meia-Noite ser homossexual pouco foi explorado.

Em 2011, o Universo Wildstorm, que incluía os personagens da Wildstorm foi absorvido pelo Universo DC Comics naquela infame iniciativa conhecida como Os Novos 52. Os antigos personagens do Authority passaram a aparecer em Stormwatch, sob a liderança do Caçador de Marte. Diferente da versão anterior, em que Meia-Noite e Apolo já se conheciam desde o início, nesta versão os dois se conheceram na equipe do Stormwatch e escondiam a sua atração mútua um pelo outro. Contudo, a série ia muito mal em vendas e foi chamado Jim Starlin para encerrá-la decentemente. O autor fez, então, que o relacionamento entre Apolo e Meia-Noite teria começado há muitos anos.

O interessante do casal Apolo e Meia-Noite é que eles rompem com o dualismo ou binarismo herdado dos casais heterossexuais, onde uma parte do casal deve ser a dominante e masculinizada e a outra, submissa e afeminada. Isso é muito comum de ser visto em quadrinhos japoneses gays feitos para garotas, os Yaoi. Já um casal masculino/masculino como Apolo e Meia-Noite são mais comuns em outras produções como os Baras japoneses. Mas esse rompimento entre estereótipos dualistas para uma visão menos binária de um casal gay só foi acontecer na virada do século com os personagens do Authority no caso dos quadrinhos gays de super-heróis dos Estados Unidos. Outro fator importante do pioneirismo do casal Apolo e Meia-Noite, foi o deles terem adotado a bebê chinesa Jenny Quantum, que encarna o “espírito do século XXI”, compondo o que alguns enchem a boca para conceituar como uma “família moderna”.

Leia mais sobre masculinidade, hipermasculinidade e super-heróis neste link aqui.

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Mas foi com uma nova versão das revistas da DC Comics, no evento DC&VC, ou DCYOU que Meia-Noite retornou aos holofotes. Os roteiristas Tim Seeley e Tom King passaram a utilizá-lo nas histórias de Dick Grayson, enquanto ele trabalhava como espião para a agência Espiral. Durante o verão de 2014, ele é apresentado  regularmente na série de quadrinhos Grayson, quando Meia-Noite trabalha para impedir a Espiral de coletar as partes do corpo de um vilão morto. Essas partes acabam conferindo àqueles que as possuem os poderes de membros da Liga da Justiça.

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Chegamos, então, à HQ que li essa semana, escrita por Steve Orlando e desenhada, em boa parte por ACO. Ela foi a estreia de Orlando na DC Comics que depois passou a escrever quadrinhos da Supergirl e da Liga da Justiça da América. Mas nenhuma com tanta virtuose como em Midnighter. Neste quadrinho HQ, que eu tive de recorrer ao importado, por desistência da Panini Brasil em publicá-la, o Meia-Noite está “dando um tempo” no relacionamento com Apolo. Assim, como o personagem teve toda sua vida inventada depois que foi abduzido por alienígenas que o tornaram aprimorado, ele quer pela primeira vez viver uma vida “de verdade”. E essa vida de verdade inclui sim, exercer sua sexualidade como gay. Portanto, essa é a história em quadrinhos de super-heróis que mais e melhor explora as nuances e as miríades dos relacionamentos gays. Aliás, conforme o que vimos, a primeira HQ a dar destaque a essa parte da vida de Meia-Noite de uma forma direta e sem rodeios. Isso porque o roteirista, Steve Orlando, é bissexual assumido.

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O roteirista Steve Orlando.

Perguntado sobre a recepção da HQ pelos leitores, Steve Orlando disse o seguinte para a revista The Advocate: “[Recebi cometários] sobre suas preferências e certos detalhes sobre a vida do homem queer médio. Mas, deixando os papéis sexuais de lado, é muito interessante que as pessoas tenham uma opinião – e eu descobri que elas têm uma opinião muito forte – sobre qualquer aspecto de sua vida de relacionamento. É emocionante para mim ver que as pessoas se importam tanto assim. Embora eu ache engraçado que eu possa causar indignação apenas dizendo se ele é ativo ou passivo. E não, eu não vou revelar isso na história”.

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Midnighter também ganhou diversos prêmios tanto da mídia gay, como o GLAAD Awards e também prêmios da mídia tradicional de quadrinhos. O personagem Meia-Noite foi escolhido pelo site Comics Alliance em 2013 como o décimo-sétimo homem mais sexy dos quadrinhos. Em 2015, pelo mesmo site ele e Apolo foram incluídos como alguns dos 18 Mais Impressionantes personagens LGBT dos quadrinhos. Em uma entrevista para o Comics Value Annual, de 1999, o Meia-Noite foi descrito por seu criador Warren Ellis como “O Sombra, como se fosse feito por John Woo”. Até a série escrita por Orlando, Meia-Noite era poucas vezes visto como Lucas Trent, ou seja, sem sua máscara. Orlando muda isso fazendo com que a cara Lucas Trent de Meia-Noite também tenha uma vida movimentada.

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O roteirista justificou essa opção da seguinte forma, também em entrevista à The Advocate: “O que eu quero fazer é criar um mundo ao seu redor que seja preenchido com outras pessoas queer também, e que eles sejam exemplos de pessoas em 3D e dê a elas as camadas e as lutas que as pessoas LGBT encaram. Mas não é possível ter um personagem representando a totalidade de qualquer minoria”. Sobre a identidade gay do Meia-Noite ser aberta, o roteirista falou que: “A ideia de que ele não tem vergonha de ser quem ele é, é tão orgulhosa e confiante, acho que isso é amplamente aplicável. E espero que seja essa mensagem que se traduza na comunidade LGBT”.

Leia o post O Que Significa Ser um Super-Homem em Tempos de “Crise da Virilidade”?

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O quadrinho de Orlando também encara a sexualidade homossexual do Meia-Noite como algo corriqueiro que faz parte da sua vida. Por exemplo, quando ele recorre à “aplicativos de pegação”, uma ferramenta que faz parte do cotidiano sexual de boa parte dos gays desta geração, uma vez que flertar em público pode representar risco de morte em alguns lugares. Também faz parte da identidade da sexualidade gay o que ocorre com um dos “peguetes” de Lucas, que recusa compromisso, que quer “ver no que dá”, evitando um relacionamento a longo prazo, se tornando um “contatinho”, ou um “fuck buddy”. É então que, na próxima tentativa, Lucar conhece Matthew, que parece disponível a estabelecer um laço mais permanente com ele.

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Outra coisa que chama atenção neste encadernado é a arte e a narrativa de ACO, muito bem engendrada e tudo a ver com o personagem. Podemos definir a participação do artista neste encadernado como essencial para seu sucesso principalmente quando comparamos sua narrativa em quadrinhos com os demais desenhistas que se encarregaram de outras histórias neste mesmo compilado. Mas mais do que isso, mais do que a espionagem, a ação, a violência, Midnighter é um quadrinho sobre pessoas que passaram anos e anos em um mesmo relacionamento e, quando, por alguma razão, se libertam dele, passam a enxergar novos horizontes e novos mundos na frente de si.

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Por isso, ela fala muito também sobre frustração, a de não encontrar pessoas como aquela do relacionamento antigo, em quem podia-se confiar. Uma jornada não só de encontrar um novo “outro”, mas como de encontrar um novo “mesmo” e isso também diz respeito a sua própria identidade e àquilo que você acredita que é. E deixei para o final para dizer que o encadernado encerra com um reviravolta mindblowing, que faz jus a todos os prêmios e críticas positivas recebidas por essa HQ.

midstorm3Orlando declarou o seguinte sobre as histórias do Meia-Noite abordarem temas relacionados à homossexualidade como nunca antes: “A DC não estaria fazendo esta revista se não houvesse uma demanda para isso e as pessoas não desejassem esse tipo de ícone. Ao mesmo tempo, mostra que os tempos estão mudando e que os quadrinhos estão evoluindo. Quadrinhos sempre foram sobre realização de desejos e identificação com os menos favorecidos. Mas agora chegamos a um ponto em que entendemos melhor o que isso significa e podemos criar mais revistas para uma gama maior de pessoas que elas também façam os trabalhos que os quadrinhos fazem”.

Por isso, foi uma bola fora da Panini Comics Brasil não ter publicado esse incrível encadernado em português. Mas espera o que de uma editora que tem um lastro histórico de descaso tanto com personagens femininas como com personagens gays, não é mesmo? Panini, te emenda, minha filha. Para que tá feio, miga!

14 comentários

  1. Orlando Barbosa de Souza diz

    Passar anos de uma juventude inteira esperando que heróis ou até padres tive-se uma vida sexualmente ativa e natural, faz eu ter medo de abrir esse tipo de revista devido a dor de cabeça e cansaço causados por tanta espera, se o sucesso depende-se de mim ela teria acabado em 2008 e recomeçado em 2014 mas como não depende de 1 só leitor, eu desejo muitos contos dramáticos com bastante beijo na boca e penetração, devagarinho eu vou conseguir ler algumas histórias acompanhar algo que eu esperei que acontece-se e demorou 20 anos pra surgir seria a mesma coisa que acompanhar um FILHO gerado por mim mesmo um verdadeiro inferno, nem filho nem fã apenas AGNALDO TIMóTIO, com G de Gay MUITO RANCOROSO.

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      • O foda é que a Panini lançou mil encadernados da Batwoman e faz de conta que Meia-Noite e Apolo não existem…
        Aliás, se não me engano, quando lançou a fase DCYou (Canário Negro, Omega Men, Doutor Destino, Academia Wayne), a Panini declarou que não publicaria MN porque não.
        Por isso só leio scan da DC.

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      • Guilherme Smee diz

        É verdade, Eddie! E isso que eles chegaram a anunciar o Meia-Noite no próprio (finado?) Blog Wizmania. Depois necas de Meia-Noite! Batwoman vende porque é Batman. Até a Bat-Meia-Suja venderia se tivesse um gibi… Panini tem uma escolhas ilógicas e sempre sem justificativas… Abraços! =)

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    • Guilherme Smee diz

      Cara, tu pode começar lendo os 4 volumes de Stormwatch, depois pode ler os 3 de Authority. É isso que temos dele que importa aqui no Brasil, infelizmentchy. Abraços! =)

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  3. Olá, Guilherme.

    Gostei imensamente da matéria, pois sou grande fã do Meia-Noite, que conheci ao ler o Authority. Seu texto me deixou muito curiosa em buscar mais, e ver esse desenvolvimento que deram a ele enquanto herói e homem gay.
    Por favor, você poderia fazer a gentileza de me dizer o nome exato do encadernado que você importou para ler a história? Eu busquei na Amazon do Brasil, porém, fiquei com dúvida de qual deles seria.
    Muito obrigada.

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    • Guilherme Smee diz

      Oi Sandra! O nome deste primeiro volume é Midnighter: Out. Depois tem mais um volume da série dele e uma minissérie Apollo & Midnighter. Esses dois últimos, infelizmente, eu não li. Abraços e obrigado pelos elogios! =)

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  4. Nada de errado com gays femininos, mas fico feliz que estejam quebrando esteriótipos e mostrando que gays masculinos existem e ao contrário do que pensa – eles são a maioria. É apenas que as pessoas não sabem que eles estão por aí justamente por não “aparentarem” ser gays. Meu antiherói favorito dos quadrinhos. Sou admirador confesso desse casal. O bicho foi até as profundezas do inferno resgatar o Apolo das garras do diabo. Só os hardcore. Bruto por fora, mas coração de ouro por dentro. Isso é o que eu chamo de amor e dedicação. Todo mundo falando em Coringa, Mulher Maravilha, Viúva Negra e Shazam. Eu só queria um filme do Meia-Noite com o Christopher Meloni que ficaria perfeito no papel. O Mattew Bomer é uma boa escolha, mas não tem como o Meloni é o Meia-Noite encarnado.

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    • Guilherme Smee diz

      Gays “femininos” e “masculinos” nos quadrinhos são algo bastante complicado de se definir. Nos quadrinhos não escutamos seus tons de voz e nem observamos seus trejeitos para poder julgar essa afetação. Portanto, pode ser muito bem que o Meia-Noite seja afeminado e não masculinizado. Isso só saberemos mesmo, como você disse, quando tivermos um filme do herói nos cinemas e entendermos como será sua encarnação em live action. Meia-Noite é um herói foda não porque ele sai quebrando todo mundo na porrada, mas porque consegue lidar com todas as condições adversas de sua vida, sendo uma delas a homofobia. Valeu pelos comentários! Abraços! =)

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