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Fãs de Quadrinhos Não Sabem Interpretar Texto?

Ou a realidade está se tornando tão insuportável de viver que agora os vilões são os heróis? Não é de hoje que heróis com ações nada ortodoxas são reverenciados pelos fãs de quadrinhos: Wolverine, Justiceiro, Juiz Dredd, Lobo e até o Batman. Mas está nas obras seminais dos quadrinhos onde mora o maior perigo: a interpretação rasa.

Era uma vez um Lobo Mau Que resolveu jantar alguém Estava sem vintém Mas arriscou E logo se estrepou...

Era uma vez um Lobo Mau
Que resolveu jantar alguém
Estava sem vintém
Mas arriscou
E logo se estrepou…

Semana passada participei de um bate-papo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre sobre Super-Heróis. Uma das questões que levantei era se os heróis tendo seu papel como uma espécie de “pais” da sociedade, os vilões não sofriam de uma espécie de complexo de édipo, querendo matar esses pais para ficar com a mãe, no caso, a humanidade. Mas temos de lembrar que a sociedade está mudando e os heróis que ela demanda não são os mesmo de antigamente, o que talvez explicaria essa manifestações de heróis porra-louca como os citados acima.

Muita gente luta por tentar colocar os quadrinhos num patamar acima da subcultura, outros tentam compará-los com a literatura. Mas, assim como a alta cultura e a literatura, os quadrinhos também precisam ser bem interpretados.

Why So Cool?

Why So Cool?

Hoje li esse texto que compara o Coringa com um herói. Mais uma vez caímos no problema de alguns adultos não saberem interpretar texto, em se idolatrar vilões. E temos a seguinte conclusão no texto: “No final, ao longo do filme Dark Knight, o Coringa faz muito mais para eliminar o crime e a corrupção em Gotham do que Batman jamais chegou perto de conseguir. Ele faz isso de maneira aterrorizante, mas é isso que acontece quando você quase mata um homem como ele. Ele é o Darkman. Ele é a Noiva. O Coringa de Heath Ledger é o verdadeiro Cavaleiro das Trevas”. É a mesma coisa que falei do Justiceiro nesse texto aqui. Os fins justificam os meios numa sociedade cada vez mais maquiavélica que, por exemplo, quer punir menores não como justiça, mas como vingança.

O Coringa é um símbolo do caos. Mas ninguém gosta de viver no caos. Então porque usar tantas camisetas do Coringa e do Justiceiro se o que eles representam é realmente a ausência de justiça no mundo numa indústria em que os valores morais dos chamados Super-heróis deveriam ser os norteadores?

Os fins justificam os meios, essa é a frase de O Príncipe, de Maquiavel. Também é uma frase de Ozymandias, de Watchmen, que destrói Nova York para salvar o mundo. Nem por isso ele é reverenciado como agente do caos ou uma espécie de Justiceiro. Outra criação de Alan Moore, V de Vingança, também foi mal interpretada pela sociedade. V não é um herói. É um homem doente. O nome da HQ não é J de Justiça, não.

V de Vi-as-figuras-e-não-li-direito

V de Vi-as-figuras-e-não-li-direito

A sociedade em que V vive está muito distante da nossa: um estado totalitário em que os habitantes são vigiados. Se a metade dos leitores de V de Vingança tivessem lido 1984, ou Admirável Mundo Novo, ou até mesmo Laranja Mecânica, entenderiam a ironia por trás da história em quadrinhos. Não teriam absorvido somente o raso que é a revolta contra o sistema. Tanto a sociedade quanto o anti-herói estão errados em V de Vingança. Alan Moore quis pontuar que para uma sociedade distorcida não existem soluções fáceis como uma revolta anarquista.

Pede pra sair da sociedade, vai! Pede pra sair!

Pede pra sair da sociedade, vai! Pede pra sair!

Da mesma forma, outro “herói” da ficção foi mal interpretado, mas dessa vez para o lado contrário. É o caso do Capitão Nascimento, personagem de Wagner Moura em Tropa de Elite. Ele é o policial durão que pune os criminosos pesadamente e não dá descanso para seus soldados. Enquanto o Coringa é o caos encarnado, Nascimento é a ordem em pessoa. Mas ser um control freak também tira seus pedaços, como é mostrado o desgaste físico e mental de Nascimento no filme. Esse lado as pessoas resolveram simplesmente esquecer e vangloriar nascimento como o símbolo do homem salvador do Brasil imerso em tráfico e criminalidade.

“Sua piscina está cheia de ratos, suas ideias não correspondem aos fatos”

O engraçado é que ao mesmo tempo as pessoas reverenciam o Capitão Nascimento ao lado de V, o Batman ao lado do Coringa. Uma prova de que a maioria dos fãs de quadrinhos não recebeu a base necessária para analisar uma história mais densa além da primeira leitura. Me perguntavam no bate-papo se as crianças saberiam interpretar uma história como V de Vingança, Watchmen ou até mesmo Batman – O Cavaleiro das Trevas. Mas o problema não são as crianças, que não tem poder de ação, mas os adultos que as leem, não as interpretam e acham que matar como o Coringa faz é bonito. Ou depredar como faz V é uma solução para uma sociedade em crise. Ou pior ainda, a repressão totalitária, direitista e massacrante de um Capitão Nascimento que quer se impor doa a quem doer.

Como chegamos à conclusão no encontro da Psicanalítica, os quadrinhos evoluem com a sociedade e nada mais são do que um reflexo da mesma. Se as histórias em quadrinhos estão cada vez mais refletindo homens com a psique dilacerada, gente doente que perdeu seu centro de moral e ética, é porque a sociedade atual não é nada mais que isso. Num tempo em que as ansiedades são tantas e as demandas de cada um se tornam maiores ainda, porque não escapar para um filme ou revista em quadrinhos em que a solução é sair metralhando geral como alívio das pulsões mais secretas? Quando nos exigem demais, num mundo cada vez mais perfeccionista, em que quem não atende o que lhe é pedido tem que cair fora do sistema, tem de usar como catarse a violência e o não cumprimento das leis?

Protestos Anônimos (Fonte: Zero Hora)

Protestos Anônimos (Fonte: Zero Hora)

Há aqueles que leem, interpretam, fazem sua catarse e guardam suas conclusões para si. Há aqueles que leem razoavelmente, não se sentem satisfeitos com o escapismo e precisam agir nas ruas, praticando o seu senso distorcido de justiça, porque leram HQ que são reflexos de uma sociedade doente, que exige de homens doentes patamares cada vez mais distorcidos do que eles devem se tornar. Ou seja: “já que eu não consigo me tornar um super-herói, serei um supervilão que é mais fácil”.

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Guilherme “Smee” Sfredo Miorando nasceu em Erechim em 1984. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, onde pesquisa quadrinhos e sexualidades. É especialista em Imagem Publicitária e bacharel em Publicidade e Propaganda. Ministra aula de quadrinhos e trabalha com design editorial e roteiros. Já trabalhou em museus e com venda de livros e publicidade. É pesquisador associado do Cult de Cultura e da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial). Faz parte do conselho editorial da Não Editora. Co-roteirizou o premiado curta-metragem Todos os Balões vão Para o Céu. Seu livro de contos Vemos as Coisas como Somos foi selecionado pelo IEL-RS em 2012. A partir de 2014, publicou ao menos um quadrinho independente por ano. Loja de Conveniências, sua primeira narrativa longa foi lançada em 2014. Em 2015 participou da coletânea de HQs LGBT Boys Love. Em 2017 colaborou com o quadrinho A Liga dos Pampas de Jader Corrêa, que explora mitos gauchescos. Também lançou Desastres Ambulantes em parceria com Romi Carlos, um quadrinhos sobre segunda guerra mundial e OVNIs, que foi selecionado pelo edital estadual PROAC/SP. Em 2017, publicou Abandonados Pelos Deuses: Sigrid, com Thiago Krening e Cristian Santos e também Fratura Exposta: REDUX com Jader Corrêa. Também escreve os roteiros para os super-heróis portoalegrenses Super Tinga & Abelha-Girl. Mantém o blog sobre quadrinhos splashpages.wordpress.com há mais de 10 anos.

12 comentários

  1. Lucas Cantino diz

    Acho que no caso do texto do Coringa é mais uma bobagem idológica deturpada (aquele monte de pontos rss reconheço o estilo) do que necessariamente má interpretação de texto…será que interpretei bem ?

    “control freak” ,valeu , sempre aprendo contigo e seus textos

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  2. Péra só um pouquinho. Em que realidade uma revolta anarquista é uma “solução fácil”? Nem na HQ ela é, imagina no mundo real. O problema do uso da violência na revolução política foi e é trabalhado por muitos autores importantes, de Walter Benjamin a Giorgio Agamben passando por Frantz Fanon e Slavoj Zizek. Da mesma forma que existiram anarquistas pacifistas como Kropotkin, existiram outros que só acreditavam na mudança através de um processo destrutivo, como Bakunin. V percebe a realidade dele de uma forma muito clara e entende que só através da violência ele conseguirá mudar isso. Podemos até discordar dele, mas é parte do personagem. Na HQ ele nunca é apresentado como um herói, de fato, mas também não é um doente, um desequilibrado. Apenas se pensarmos na figura do herói como aquele que combate pela liberdade, então V pode ser visto como um herói, como os próprios anarquistas fizeram ao reabilitar a figura de Guy Fawkes, a figura histórica que inspirou boa parte da HQ. Entendo a bronca em ler o Coringa como um herói, mas não concordo com essa leitura do V que foi feita no texto.

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  3. Felipe Morais diz

    Muito pelo contrario, acredito que as pessoas entenderam perfeitamente os recados contidos nas historias citadas, mas em todas elas vemos o embate entre dois extremos.
    Em V, temos um governo 100% de direita enquanto V representa 100% a esquerda, é um choque de ideais, qual deve prevalecer? Podemos escolher um lado em nossa leitura? A sociedade perfeita vive em equilíbrio, mas ela não existe nessa histórias, então devemos escolher um lado! Se o leitor escolheu o lado do V, Coringa, Capitão Nascimento, Ozymandias etc. Significa que ele entendeu a leitura, que entendeu que não se pode viver dos dois lados e uma escolha deve ser feita. Agora se formos obrigados a escolher outro lado, o lado contrário da massa, pra dizer que entendemos uma obra, é melhor que essa obra nem seja lançada.

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  4. Cara, concordo com tudo o que disse. De um lado temos heróis mais humanos, do outro fãs que não sabem interpretar o que a própria obra diz. Analisei a mesma coisa sobre V de Vingança (neste análise aqui: http://divisao42.blogspot.com/2015/05/v-de-vinganca-e-os-simbolos.html ) e percebi como as pessoas erroneamente interpretam as mensagens passadas. Ta bom que o filme distorce e altera a obra original, tanto que o Alan Moore odiou, mas mesmo assim, ainda tem o mesmo teor.
    O V não é de direita nem de esquerda, ele é um puro anarquista. Desde o começo, a ideia do Moore era colocar um embate de ideias totalmente contrárias, porém o que fica perceptível é que o V não se difere tanto assim do Estado totalitário ao qual ele estava inserido. Ele busca puramente VINGANÇA e não justiça. Tanto que ao final ele muda de ideia, reconhecendo o erro, e deixando a decisão nas mãos da Evey, que representa o povo.
    Se o V continuasse, talvez se tornasse tão controlador quanto os homens que o controlaram. Sendo assim, nada é a toa as referencias – Guy Fawkes foi um homem que tentou explodir o parlamento para instaurar um Estado religioso católico. Ou seja, talvez ele tivesse até uma visão nobre, mas seus objetivos eram tão decisivos e controlados. que simplesmente mudaria o tipo de regime para um parecido ou talvez um pouquinho melhor – isso resume o personagem V, que é totalmente cruel.

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  5. Acharmos que quadrinhos são representações fieis da realidade ainda é um erro muito grande. Vende-se a inocência e o puritanismo, que nada mais é a hipocrisia que não se pode mostrar aos “outros”. O mundo real quando é descrito não chama a atenção, mas quando algo chama a atenção ele é pacificável de criticas tão forçadas quando o que se acha do que se escreve…
    O coringa é um personagem deturpado e nada , mas nada do que ele faz é justificado, concordo com o caso do V seu um egoísta anarquista. Mas ea Bomba Atônica lançada no japão, se isso não acontecesse como seria..?

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  7. Ótimo texto, e os comentários também estão muitos bons.
    Gostaria de acrescentar à discussão:
    (1) o caso do Ozymandias é peculiar: ele tem o maior QI do mundo, mas parece ter o menor QE tembém, ou seja, o cara mais inteligente do mundo só conseguiu pensar numa solução que mataria metade de uma cidade. Ele conseguiria arquitetar outra solução? Dentro da lógica do personagem, creio que ele conseguiria pensar inúmeras outras soluções (se tivesse tempo). Mas… os fins justificam os meios, né? Muito QI, pouco QE.
    (2) Dracula Tepes também é tido como herói por uns, e vamp… ops! Vilão por outros.

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