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A mitologia dos super-heróis

A obra de arte proporciona uma experiência intemporal e, por momentos o espectador é tão imortal quanto Will Eisner.

A obra de arte proporciona uma experiência intemporal e, por momentos, o espectador é tão imortal quanto Will Eisner.

Os quadrinhos de super-heróis, assim como outras obras de arte, provocam reações de identificação com o leitor: podem desvendar de forma vicariante, com seu efeito catártico, os dramas psicológicos e os mitos universais do homem. Por sua facilidade de leitura e de ingresso na trama, seus atributos se mostram como uma oferta à intimidade, proporcionando elaborações de fantasias acompanhadas de sensações de bem estar, ou mesmo de desconforto, provocando empatia no seu público-leitor.

“Na plenitude de sua função expressiva e catártica, a obra criada se impõe como objeto bom, revalorizador do ego, para o agente da criação e para o espectador. Para o agente, porque vivencia a obra como um complemento do próprio ser, que o ajuda, através do artifício da projeção, a configura e a corrigir a representação que faz de sua auto-imagem e a ampliar a compreensão de sentido de sua existência. Para o espectador, mediante a função especular e as conseqüentes oportunidades de identificação projetiva inerentes a toda produção conceitual ou artística, e mais precisamente porque lhe proporciona uma experiência no intemporal. E assim, por momentos, o espectador é imortal como supõe que seja o criador”, é o que nos diz Isaac Pechansky, no livro A face escondida da criação.

Hoje, os super-heróis constituem mitos, pois estão presentes nas conversas de amigos, em produtos, na publicidade, nas mais diversas mídias, dos livros à televisão, são aceitos e apreciados por grandes camadas de público de diversas idades e países, assumindo seu lugar no imaginário popular. Os super-heróis são símbolos facilmente identificáveis, obtendo uma persuasão tão eficaz que só pode ser comparada às grandes figuras mitológicas da antiguidade. Roman Gubern, em Literatura da Imagem, compara os super-heróis com os heróis mitológicos greco-romanos:

“Ao contrário dos grandes mitos emanados das velhas religiões de culturas primitivas, o público leitor sabia perfeitamente que seus admirados personagens eram fictícios, produtos de tinta-da-china em cima do papel e não reais como os Atenienses poderiam pensar de Hércules; porém, tal condição fabulosa não impediu, nem impede, a adesão solidária e, inclusive, a veneração fervorosa do público a seu herói favorito”.

Desta maneira, os super-heróis se tornaram representações universais, mitos modernos, “sonhos coletivos, aspirações instintivas, sentimentos e padrões de pensamento da humanidade que parecem estar implantados nos seres humanos e que de alguma forma funcionam como instintos ao moldarem nosso comportamento” segundo Sal Randazzo, em A criação de mitos na publicidade: como os publicitários usam o poder do mito e do simbolismo para criar marcas de sucesso.

Os quadrinhos levam a outras realidades

Fugitivos: Os quadrinhos levam a outras realidades

O fenômeno psicológico que leva a atribuir uma personalidade quase real a um personagem desenhado chama-se identificação projetiva, com base nos mecanismos de identificação e de projeção, do “eu” do leitor sobre os personagens das histórias em quadrinhos e das narrativas em geral. Essa identificação acontece sem a necessidade de recursos técnicos. Mesmo em um ambiente impróprio, como em um ônibus superlotado, o indivíduo foge da realidade através da história e passa a “ser” o herói que tem em suas mãos.

Conforme Gubern, sem tais mecanismos seria impossível uma aceitação do ambiente ficcional da história e a adesão emotiva ao herói.

Se por um lado acontece o processo da mitificação dos super-heróis, ao mesmo tempo ocorre a desmistificação dos mesmos, facilitando a identificação por parte do público leitor.

Na pele de seus alter-egos, suas identidades secretas, os heróis personalizam cidadãos comuns, com seus próprios dilemas e complicações e é nesta humanização dos super-heróis, independentemente de serem virtualmente indestrutíveis e supra-humanos, que reside a essência da identificação projetiva que desmistifica esses heróis. Ao estudar o mito do Superman, Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados analisa o papel da outra personalidade do super-herói, Clark Kent, ao compreender que sua dupla identidade garantia a articulação de suas aventuras:

“Mas, do ponto de vista mitopoiético, o achado chega a ser mesmo sapiente: de fato Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer de uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a esperança de que um dia, das vestes de sua atual personalidade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade”.

nossos aliados na luta para entender a vida, o universo e tudo mais.

Super-heróis: nossos aliados na luta para entender a vida, o universo e tudo mais.

Caso o Superman fosse um imortal, sem a condição de ser uma criatura inserida na vida cotidiana, não seria mais um homem, mas um deus, e a identificação do público leitor com sua outra personalidade cairia no vazio. Portanto, os personagens de uma revista em quadrinhos de super-heróis devem ser arquétipos, o conjunto de determinadas aspirações coletivas, e devem se apoiar em uma imagem fixa que as tornem facilmente reconhecidas.

Os arquétipos funcionam de certa forma como instintos que guiam e moldam nosso comportamento. As mitologias, bem como os arquétipos, ajudam as pessoas a encontrarem suas identidades, ajudam-nas a em sua luta para entender o universo e o lugar que ocupam nele. Segundo Randazzo, os meios de comunicação têm o papel de transmissores da mitologia dos arquétipos, capitaneados pela publicidade geradora de modas e padrões que orientam as massas.

Para Maria Celeste Mira, que escreveu O leitor e a banca de revsitas: a segmentação da cultura no século XX, o comportamento dos jovens está estritamente ligado ao consumo de entretenimento e à mídia, gerando tribos, ondas e modas. Os profissionais de marketing utilizam amplamente esta relação entre a construção da identidade dos jovens e o consumo:

“É durante o móvel e incansável período da juventude que a necessidade e o desejo de testar o novo e esculpir identidades individuais é mais forte. As pessoas jovens têm uma grande quantidade de tempo livre e um interesse considerável em consumo e entretenimento (mesmo que os meios financeiros para acompanha-los esteja faltando) (Mira apud Reimer, 2001, p.159)”.

Ao mesmo tempo, ao analisar a indústria do cinema, o crítico Edgar Morin, analisa a função da mitologia moderna, presente em novos arquétipos chamados por ele de “olimpianos” no livro Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo.:

“Um Olimpo de vedetes domina a cultura de massa, mas se comunica, pela cultura de massa, com a humanidade corrente. Os olimpianos, por meio de sua dupla natureza, divina e humana, efetuam a circulação permanente entre o mundo da projeção e o mundo da identificação. Concentram nessa dupla natureza um complexo virulento da projeção-identificação. Eles realizam os fantasmas que os mortais não podem realizar, mas chamam os mortais para realizar o imaginário. A esse título os olimpianos são os condensadores energético da cultura de massa. Sua segunda natureza, por meio da qual cada um pode se comunicar com sua natureza divina, fá-los também participar da vida de cada um. Conjugando a vida quotidiana e a vida olimpiana, os olimpianos se tornam modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida. São heróis modelos. Encarnam os mitos de auto-realização da vida privada”.

Pais com poderes extraordinários

Super-heróis: Pais com poderes extraordinários

Para as crianças, segundo Paulo Gaudêncio, que escreveu o artigo Elementar, meu caro Freud, no clássico Shazam!, de Álvaro de Moya, o super-herói é um elemento fundamental na construção de valores e durante o crescimento, enquanto se torna parte da sociedade. O herói é forte, indestrutível, honesto, altruísta e justo, características mesmas que se esperam do pai, na visão infantil. O super-herói, assim como a figura patena, encarna o ego idealizado, ou seja, o padrão que o indivíduo pretende seguir pelo resto da vida. Para o autor, “as características dos heróis, que na visão infantil são características paternas, passam a fazer parte do estereótipo de homem que cada ser humano cria para si, e que realiza no herói com o qual se identifica”.

O universo dos super-heróis com demonstrações de super-poderes, tecnologia e violência é uma forma de fuga da autoridade e de evasão da realidade, conforme atesta Amanda Sefton-Green ao conversar com garotos sobre desenhos animados:

“Para as crianças… as diferenças de idade – e a percepção social e construção do significado dessas diferenças – são inevitavelmente significantes: o que significa ser ‘homem’ e o que significa ser ‘adulto’ ou ‘infantil’ interceptam-se de formas complexas… Muito do apelo das narrativas ‘violentas’ no cinema e na televisão, pelo menos para os meninos, é que lhes parecem oferecer soluções – embora temporárias e num nível que é claramente reconhecido como o da fantasia – para inseguranças e ameaças físicas muito reais e permanentes (Mira apud Sefton-Green, 2001, p.169)”.

As revistam em quadrinhos também se revelam instrumentos de catarse, levando o leitor, através de sua identificação com os heróis, sentir-se vingado, pelo massacre inconsciente de seus inimigos, gerando um afastamento de seus próprios problemas e de suas próprias frustrações.

Criança que lê HQ junta, cresce junta!

Criança que lê HQ junta, cresce junta!

“A história em quadrinhos de aventura não é apenas uma compensação das grandes crises históricas; é-o também da monotonia da vida cotidiana, oferecendo uma fuga no sonho. (…) Tal como o folclore, a história em quadrinhos é, ao mesmo tempo, viva, atual, ligada aos problemas do tempo presente, e permanente, de todas as épocas, graças aos arquétipos dos quais toma seus temas. (…) Por trás da contingência das ideologias esconde-se a permanência das mitologias”, é o que diz Jean-Bruno Renard em Bandes dessinés et croyances du siècle.

Os super-heróis, portanto, funcionam como orientação para a vida de seus leitores, modelos que devem seguir a fim de vencer as adversidades colocadas à sua frente, alimentados pelas revistas em quadrinhos que disseminam suas aventuras.

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Retirado do artigo Super-Heróis: Os Novos Olimpianos, de Guilherme Smee.

por

Guilherme “Smee” Sfredo Miorando nasceu em Erechim em 1984. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, onde pesquisa quadrinhos e sexualidades. É especialista em Imagem Publicitária e bacharel em Publicidade e Propaganda. Ministra aula de quadrinhos e trabalha com design editorial e roteiros. Já trabalhou em museus e com venda de livros e publicidade. É pesquisador associado do Cult de Cultura e da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial). Faz parte do conselho editorial da Não Editora. Co-roteirizou o premiado curta-metragem Todos os Balões vão Para o Céu. Seu livro de contos Vemos as Coisas como Somos foi selecionado pelo IEL-RS em 2012. A partir de 2014, publicou ao menos um quadrinho independente por ano. Loja de Conveniências, sua primeira narrativa longa foi lançada em 2014. Em 2015 participou da coletânea de HQs LGBT Boys Love. Em 2017 colaborou com o quadrinho A Liga dos Pampas de Jader Corrêa, que explora mitos gauchescos. Também lançou Desastres Ambulantes em parceria com Romi Carlos, um quadrinhos sobre segunda guerra mundial e OVNIs, que foi selecionado pelo edital estadual PROAC/SP. Em 2017, publicou Abandonados Pelos Deuses: Sigrid, com Thiago Krening e Cristian Santos e também Fratura Exposta: REDUX com Jader Corrêa. Também escreve os roteiros para os super-heróis portoalegrenses Super Tinga & Abelha-Girl. Mantém o blog sobre quadrinhos splashpages.wordpress.com há mais de 10 anos.

14 comentários

  1. Muito bom! :):):):):):):):P)

    fascinante, gerou-me varios insight de consciencia.

    Adiciono: Assim como no renascimento, o conhecimento do que antes era apenas da elite, considerando ireal- estranho – sonhado. Tornou-se não só disponivel por estar para todos, mas sim pelo ser humano descobrir que aquele sonho pode tornar-se realidade e de que ele percebeu isso pór si mesmo. Não por imposissão ou dogmatismo.

    Dizem os antigos (e ocultistas) que empatia é a lingua dos céus e das estrelas. Muito proximas do nosso coração e obviamente dos sentimentos; a essencia da telepatia!

    “o leitor, através de sua identificação com os heróis, sentir-se vingado, pelo massacre inconsciente de seus inimigos, gerando um afastamento de seus próprios problemas e de suas próprias frustrações.” -> Iguazinho aos processos atemporais de Meditação! O afastamento do eu(ego) a procura de sua essencia(self/ atma/ chi/ ki), seu verdadeiro e jovem-eu.
    Meditação nada mas e´de que um processode interiorização e focalização da consciencia e dos pensamentos em uma unica intenção;

    Por exemplo; se um jovem começa a ler um gibi, ele se afasta do que esta em sua volta(sua carne), se concentra- interage internamente com a historia(representação do atma) até focalizar todos seus esforço e pensamentos como um só(cada um deve ter um momento hq que nos “entorpeceram” completamente :P). Acabando a leitura como um novo ser, quem sabe renovado e ainda proximo de si(super-homem).

    “Se por um lado acontece o processo da mitificação dos super-heróis, ao mesmo tempo ocorre a desmistificação dos mesmos…”
    Acredito que non ocorre apenas a desmitificação dos mesmo, mas sim também da propria realidade em nossa volta, esta deixa de ser única possível.(mais ou menos como no matrix haha XD)

    Nossa to me empolgando demais por aqui hahah
    Abração, e parabens.
    Mosca.

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  2. guilhermesmee diz

    Sim, também achei isso. Ou é paranóia ou é mistificação, já diria Monteiro Lobato. mas parece mais uma continuação ou uma espécie de resposta ao post anterior, já que postei ele num dia e o artigo surgiu no outro.

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  3. Acho que non é nenhum nem outro, nada é por acaso. Como já disse V em V for vendetta: “Não existe coincidência, apenas a ilusão de uma coincidência.”

    De qualquer forma “são frutos da mesma semente, floresceram ao mesmo tempo, provavelmente amadurecerão juntos.” Basei no proverbio do Rei Salomão hahaha

    Parte do meu tcc é tb sobre o mesmo assunto.
    Abraços
    Mosca

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  4. Cara, que texto ótimo! Aliás, estou dando uma volta pelo seu blog e tenho que dizer que adorei. Continue postando esses ótimos textos!

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